Artigo Nº 86 – LEI COCHILA, O JUIZ CORRIGE

Quando a lei é falha, omissa ou ruim mesmo, costuma-se dizer, benevolentemente, que houve um cochilo do legislador. Quando isso ocorre, ou se muda a lei, ou se lhe dá uma interpretação de caráter corretivo, para depurá-la dos piores vícios. Este tem sido o papel fundamental de nosso Judiciário.

Há dias, deparamo-nos com exemplo característico de aperfeiçoamento da lei pelo juiz, no tocante à exigência de caução para a execução provisória de sentença, em ação de despejo por falta de pagamento.

Decidindo aparentemente contra a lei, o magistrado feriu e solucionou o problema com rara síntese, num único parágrafo, que transcrevemos:

“Sendo a falta de pagamento dos aluguéis a mais grave das infrações contratuais (inciso III do art. 9º) e ao mesmo tempo espécie do gênero ‘infração contratual ou legal’ a que alude o inciso II do mesmo artigo da lei pertinente, não exigindo a lei caução nesta hipótese (art. 64), dispenso a parte autora de prestá-la na hipótese de se dar a execução provisória da presente decisão.” (Juiz de direito Renato Lopes de Paiva, da 16ª Vara Cível de Curitiba)
Para quem não acompanha no dia-a-dia as discussões jurídicas da locação, é importante relembrar o nó da questão. Diz a Lei do Inquilinato (8.245/91) o seguinte:
“Art. 64. Salvo nas hipóteses das ações fundadas nos incisos I, II e IV do art. 9º, a execução provisória do despejo dependerá de caução não inferior a doze meses e nem superior a dezoito meses do aluguel, atualizado até a data do depósito da caução.”
Por sua vez, o artigo referido está assim redigido:
“Art. 9º A locação também poderá ser desfeita:
I – por mútuo acordo;
II – em decorrência da prática de infração legal ou contratual;
III – em decorrência da falta de pagamento do aluguel e demais encargos;
IV – para a realização de reparações urgentes determinadas pelo Poder Público, que não possam ser normalmente executadas com a permanência do locatário no imóvel ou, podendo, ele se recuse a consenti-las.”

Ao excepcionar os incisos I, II e IV da obrigatoriedade da caução, o art. 64 da Lei do Inquilinato não se referiu à ação de despejo por falta de pagamento (inciso III do art. 9º), trazendo como conseqüência injustificado ônus ao proprietário, já prejudicado pelo não recebimento dos aluguéis. Tal omissão foi tida como lapso do legislador (simples erro de datilografia ou de revisão), uma vez, na época e agora, era mais do que óbvio de que a caução não deveria ser exigida na ação de despejo por falta de pagamento, e sim em outras hipóteses, como retomada por denúncia vazia, para uso próprio e, quem sabe, certas infrações contratuais.

Para contornar o lapso do legislador, diminuindo as agruras do senhorio, passou-se a aceitar que a caução fosse feita com os próprios aluguéis devidos pelo inquilino ou com a oneração do próprio imóvel (o que pode ser inconveniente para o locador, caso queira vendê-lo).

Relendo a sentença do ilustre magistrado da 16ª Vara Cível de Curitiba, pode-se chegar à conclusão de que o legislador talvez não tenha cochilado, mas intencionalmente deixado de citar a falta de pagamento do aluguel e demais encargos (art. 9º, inciso III), por entender também que seria supérfluo, já que “é a mais grave das infrações contratuais” e “ao mesmo tempo espécie do gênero infração contratual ou legal”, como bem esclarece a sentença mencionada.

Importante registrar, finalmente, que o legislador pode cochilar e até dormir no desempenho de seu papel, mas que a Justiça está sempre de plantão, coibindo os abusos e idiossincrasias da lei, para a tranqüilidade e garantia de todas as pessoas. 

Luiz Fernando de Queiroz é autor do TPD-Direito Imobiliário e do Guia do Condomínio IOB, fone 041-224-2709 e fax 224-1156.