Continuam a avolumar-se nos tribunais questões relativas à fiança locatícia. Nessa onda de negativas e impugnações, alguns casos mostram certas peculiaridades, o que exige do julgador habilidade para distinguir, evitando cair na vala comum das convicções baseadas na repetição da mesma história. Foi o que aconteceu em processo do Distrito Federal, relatado pela desembargadora Carmelita Brasil (2001.00.2.005625-3), cuja ementa diz o seguinte:
“O marido não pode, sem o consentimento da mulher, qualquer que seja o regime de bens, prestar fiança e, se o fizer, será a mesma nula. Não se controverte que o objetivo da lei, ao exigir o consentimento do outro cônjuge, é, inquestionavelmente, evitar que o patrimônio do casal, ou de qualquer dos cônjuges, fique sujeito à constrição judicial por dívida alheia, sem que de tudo tenha o outro ciência. Mas sendo o devedor principal a própria mulher, não se pode, a pretexto de prestigiar fórmulas sacramentais, porque esta não lançou sua firma ao lado da do marido, alegar que não houve aquiescência da consorte.”
O detalhe, obviamente, está na última oração da ementa. Vale colher outras informações do acórdão da 5a. Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal.
Buscar o sentido
Trata-se de agravo de instrumento contra decisão do juiz de Taguatinga, que ao sanear embargos à execução, repeliu preliminar argüida pela embargante que sustentou a ilegitimidade passiva de seu marido, o fiador, ao argumento de que sento casado não poderia prestar fiança sem a anuência de sua mulher, a agravante.
Em seu voto, a desembargadora Carmelita Brasil, em primeiro lance, mostra que, efetivamente, “pacificou-se na jurisprudência pátria o entendimento segundo o qual a fiança prestada sem o consentimento do cônjuge é nula”, e que, “tem a mulher legitimidade inquestionável para argüi-la”, o que poderá fazer “inclusive, até mesmo após a extinção da sociedade conjugal”. Diz mais, que “quem não tem legitimidade para tal é o próprio fiador”.
Porém, enfatiza a magistrada, “se interpretar é buscar o verdadeiro sentido das coisas, impõe-se reconhecer que quando o devedor principal é um dos cônjuges, não se pode, a pretexto de prestigiar fórmulas sacramentais, alegar que não houve aquiescência do consorte”.
Evitar armadilhas
Em outras palavras, como pôde a esposa fiador alegar que a fiança era nula, por falta de consentimento dela, se a própria era a locatária do imóvel? Só porque não assinou duas vezes o contrato, uma na qualidade de locatária e outra na qualidade de fiadora e principal pagadora ou de cônjuge do fiador? Tivesse o processo sido julgado em outras épocas, quando o formalismo da justiça era bem maior do que hoje, ou, ainda agora, tivesse sido outro o juiz, talvez o resultado fosse diferente.
Na dicção da sentença de 1o grau: “…eventual e abstrato acolhimento [dos embargos] prestigiaria a torpeza, porquanto JWGO [o fiador] prestava fiança para sua própria esposa, ora embargante e locatária, que, evidentemente não pode afirmar inexistência de sua anuência”.
Votaram com a relatora os desembargadores Haydevalda Sampaio e Roberval Casemiro Belinati.
Para quem trabalha no mercado imobiliário, reconforta ver uma decisão de tal conteúdo. Maior tranqüilidade terá, entretanto, quem for precavido. Sempre que, ao assinar um contrato, uma pessoa representar a si e a terceiros, ou que tiver mais de uma qualificação (vg, locatário e fiador, vendedor e anuente, comprador e representante etc.) convém assinar o instrumento quantas vezes forem necessárias, indicando a razão de tal ato. Há quem recomende que mesmo as rubricas dadas nas folhas iniciais sejam repetidas como as assinaturas.
Num país que prestigia a burocracia e se deleita em criar armadilhas para as pessoas de boa fé, e onde nem sempre há juízes com espírito aberto, é sempre melhor prevenir que remediar.
Luiz Fernando de Queiroz é autor do TPD-Direito Imobiliário e do Guia do Condomínio IOB, fone (41)224-2709, fax (41)224-1156, e-mail lfqueirozadv@softone.com.br.