Artigo Nº 198 – USUCAPIÃO A EX-INQUILINO

A existência de antigo contrato de locação não é óbice à ocorrência do usucapião extraordinário, se, com o decorrer do tempo, o inquilino passa a possuir o imóvel como se seu fosse. Tal entendimento, se não inédito ao menos inaudito, é mais um dos posicionamentos do Superior Tribunal de Justiça marcados por avanços ou mudanças de foco que, de um lado, têm merecido os maiores louvores e, de outro, trazido preocupação às partes perdedoras.

A ementa do julgado da 4a. Turma do STJ(Resp 154.733/DF),  tendo como relator o ministro Cesar Asfor Rocha, está assim redigida (grifos originais):

“O usucapião extraordinário – art. 55, CC – reclama, tão-somente: a) posse mansa e pacífica, ininterrupta, exercida com animus domini; b) o decurso do prazo de vinte anos; c) presunção juris et de jure de boa-fé e justo título, ‘que não só dispensa a exibição desse documento como também proíbe que se demonstre sua inexistência’. E, segundo o ensinamento da melhor doutrina, ‘nada impede que o caráter originário da posse se modifica’, motivo pelo qual o fato de ter havido no início da posse da autora um vínculo locatício, não é embaraço ao reconhecimento de que, a partir de um determinado momento, essa mesma mudou de natureza e assumiu a feição de posse em nome próprio, sem subordinação ao antigo dono e, por isso mesmo, com força ad usucapionem.”

Em seu voto, o ministro-relator explica que a despeito da sentença ter como atendidos os pressupostos básicos do usucapião, “a decisão reformadora desprestigiou o requisito da posse, por ter sito ela originada de avença locatícia”, a qual seria “insusceptível de ter a sua natureza transfigurada, com aptidão para gerar o usucapião”. Porém, a empresa-locadora nunca cobrara os aluguéis do locatário, fato que ficou comprovado nos autos, o que, de qualquer forma, não modificaria o fulcro da questão.

No dizer do ministro Cesar Asfor Rocha:
“Admitindo-se que de início tenha havido, mesmo que no plano intencional, a relação locatícia, nada impediria a transmudação da natureza da posse, em decorrência de fatores circunstanciais, notadamente o abandono por parte do proprietário que em nenhum momento cuidou de implementar os cometimentos impostos ao locador, v.g.: a instrumentalização da avença; a cobrança dos aluguéis; o manejo das ações cabíveis para reprimir a mora etc.”

O julgado do STJ cita a seguir o entendimento de Lenine Lequete, segundo o qual “o que possuía como Locatário, por exemplo, desde que tenha repelido o proprietário, deixando de pagar os aluguéis e fazendo-lhe sentir, inequivocadamente a sua pretensão dominial, é fora de duvida que passou a possuir como dono”(Da Prescrição Aquisitiva).

É importante transcrever tais ensinamentos, porque existe no meio imobiliário a noção de que o usucapião nunca é possível se a posse do imóvel deu-se em função de um vínculo locatício. Em princípio, está correta a tese. Se existe um contrato de locação no início da posse, o locatário não poderá alegar que a exerce com o ânimo de dono, requisito essencial para caracterizar o usucapião. Porém, se o locador não formaliza o contrato em instrumento escrito, deixa de cobrar os aluguéis (acontece muito isso, sim senhor) e não ajuíza ação de despejo, corre o risco de perder seu imóvel, como no caso objeto da decisão do STJ.

O Direito não socorre os que dormem, já diziam nossos antigos jurisconsultos. 

Luiz Fernando de Queiroz é autor do TPD-Direito Imobiliário e do Guia do Condomínio IOB, fone (41) 224-2709, fax (41) 224-1156, e-mail lfqueirozadv@softone.com.br